Veja
neste artigo: O
modelo biomédico de atenção à saúde. A prática da medicina e a relação
médico-paciente. O sistema de saúde e a máquina de fabricar doentes. O
especialista: sabendo cada vez mais sobre cada vez menos. Uma visão holística
da saúde.
O
modelo biomédico
Apesar
do grande desenvolvimento da ciência e da tecnologia médica nas últimas
décadas, o homem ainda não conseguiu acabar com o fantasma da doença que,
apesar de todo o progresso, continua a lhe desafiar. No mesmo noticiário de TV
em que vemos cenas do último transplante de coração, fígado e pulmões, ou onde
se discute a possibilidade de escolha do sexo e até da cor dos olhos do futuro
bebê pelos pais, assistimos também às notícias trágicas do avanço da AIDS, das
doenças cardíacas, do câncer e, como se não fosse o bastante, da cólera, da
dengue e da febre amarela, doenças que julgávamos relegadas às crônicas do
século passado e que agora ressurgem para ficar, parece que por muito
tempo.
O
noticiário também mostra as longas filas nos postos de atendimento à saúde
pública, os pacientes morrendo sobre macas nos corredores por falta de médicos
nos pronto-socorros, as cenas medievais nos hospitais psiquiátricos, os
medicamentos inócuos ou até prejudiciais que são colocados à venda por
laboratórios inescrupulosos.
Não
poderia ser diferente. Predomina na sociedade ocidental uma forma de encarar o
corpo humano e os problemas relativos à saúde e à doença segundo uma ótica
própria e particular, baseada no paradigma newtoniano-cartesiano de
explicação da realidade. Fundamentado nas idéias de Newton e Descartes, este
paradigma tem como características principais o determinismo
(conhecendo-se as leis causais dos fenômenos é possível determinar a sua
evolução), o mecanicismo (concepção do universo como máquina, sujeito a
leis matemáticas), o empirismo (apenas o conhecimento a partir de fatos
concretos tem valor científico) e a fragmentação (a decomposição do
objeto de estudo em suas partes constituintes).
Este
paradigma serviu de modelo no século XVIII para a estruturação da maioria das
ciências e práticas que hoje dominam a nossa sociedade, incluindo-se aí a
Medicina como hoje é praticada baseada na Fisiologia, na Biologia, na
Bioquímica, ciências estruturadas também nesse mesmo período e seguindo esse
mesmo paradigma. Baseado neste paradigma é que o modelo predominante de prática
médica na sociedade ocidental, o chamado modelo biomédico, tem como
características principais as seguintes:
a) o
corpo humano é (ou funciona como) uma máquina;
b) a saúde é o funcionamento perfeito dessa máquina e a doença uma avaria;
c) cabe ao médico consertá-la.
b) a saúde é o funcionamento perfeito dessa máquina e a doença uma avaria;
c) cabe ao médico consertá-la.
Esse modelo determina:
a) a prática da medicina, que se caracteriza basicamente pela forma como se dá a relação médico-paciente;
b) a organização dos sistemas de atenção à saúde;
c) a formação de recursos humanos na área de saúde, incluindo aí a formação médica.
A relação médico-paciente
A relação médico-paciente é talvez uma das relações mais ricas em significados que se estabelece entre dois indivíduos. Quando uma pessoa adoece e procura um médico seus objetivos são, à primeira vista, muito simples: ela quer ser tranquilizada, compreendida, aliviada e curada no mais breve espaço de tempo, da maneira menos incômoda e mais barata possível. Ora, o médico, que compartilha daquela visão do corpo como máquina, raramente considera a dimensão humana do seu doente e poucas vezes o vê como uma pessoa que se sabe doente, sabe algo sobre a sua doença e tem algum tipo de idéia sobre a cura.
O
conceito de doença também difere, dependendo da ótica pela qual é visto.
Para o médico, é uma alteração do equilíbrio físico ou psíquico, caracterizada
por um conjunto de sintomas e sinais clínicos que devem ser pesquisados através
de uma série de exames, levando a um diagnóstico, com terapêutica e evolução
determinadas. Para o doente, a doença é um transtorno que lhe impede de
trabalhar, lhe acarreta perda de tempo e de dinheiro e lhe tira a
tranquilidade, fazendo-o vivenciar um dos mais antigos sentimentos do homem: o
medo da Morte.
Configura-se
aí uma situação singular: tem-se frente a frente duas pessoas, uma das quais se
encontra em situação privilegiada de dominação sobre a outra e com idéias
totalmente contrárias sobre o mesmo episódio que os uniu: a doença.
Por
imposições de ordem econômica a que é submetido, o médico é geralmente um homem
atarefado, com horários a cumprir, limitado por normas da empresa médica a que
serve, seja ela privada ou pública. Durante a consulta, surgem novas
perplexidades. O paciente é submetido a um interrogatório recheado de perguntas
para ele totalmente destituídas de sentido e de qualquer utilidade prática.
A
pressa em atender faz com que o médico se impaciente com a demora nas respostas
e o resultado é um paciente atemorizado, confuso e finalmente mudo, sendo
frustrada aí qualquer possibilidade de comunicação. Ao fim da consulta, levando
na mão uma receita escrita com letra incompreensível e que não lhe foi sequer
explicada, o doente se vê invadido por um sentimento de abandono e frustração
que anula qualquer intenção de seguir a orientação médica.
Finalmente,
a relação médico-paciente se processa como uma relação de poder, autoritária,
onde se exige a submissão do doente ao "aparelho médico" e isso se
faz limitando o controle que o leigo exerça ou possa exercer sobre o saber
médico. O poder médico se exerce tanto pelo domínio de termos e técnicas
próprias inacessíveis ao leigo como pela interferência cada vez mais ampla em
domínios até então da competência do próprio indivíduo, como os cuidados com a
gestante, o parto e os cuidados com a criança, por exemplo.
Eventos
que antes aconteciam de forma natural são tecnificados, medicalizados, e o
indivíduo vai se tornando cada vez mais incapaz para lidar com os aspectos
fisiológicos de sua vida como, por exemplo, o parto, a amamentação e os
cuidados com as crianças. Nem a Morte consegue escapar da invasão da técnica,
já que não se permite mais que o paciente morra sossegado. Em vez de morrer
dignamente em sua cama, cercado pelo afeto e compreensão dos familiares,
fazendo suas últimas recomendações, o indivíduo fica numa fria e impessoal sala
da UTI, perfurado por agulhas e conectado a tubos, porque a medicina, por não
saber lidar com a Morte, recusa-se a permitir que ela aconteça, seguindo o
curso natural da Vida.
Os
serviços de atenção à saúde, tanto públicos como privados, também se organizam
de acordo com a concepção mecanicista do organismo. Assim é que existe a
organização hierarquizada dos serviços de saúde pública, com graus
crescentes de especialização, onde o doente penetra no sistema e vai caminhando
ao longo dele como numa imensa linha de montagem até chegar aos grandes centros
de tecnologia médica cujo apanágio é o Instituto do Coração de São Paulo.
Concebido
como uma máquina, o sistema deve ter a capacidade de absorver a maior
quantidade possível de indivíduos doentes e devolvê-los como saudáveis. Para
isso, grandes quantias são gastas no aperfeiçoamento da máquina, para que ela
tenha condições de processar uma quantidade cada vez maior de doentes. Essas
quantias são desviadas da medicina preventiva e de outros programas que
impediriam ou diminuiriam a ocorrência de doenças. E esse é um problema difícil
de sanar pois, como já se investiu bastante na máquina, não se pode agora
desativá-la, o que fatalmente ocorreria se a medicina preventiva diminuísse o
número de doentes. É semelhante a aumentar o contingente e equipar cada vez
mais a polícia para acabar com a violência. O máximo que se pode conseguir é
transformar a sociedade numa praça de guerra, com dois exércitos - policiais e
bandidos - a se entrematarem furiosamente.
Parece
que já nos encontramos perto dessa situação no que se refere à saúde pública.
De um lado uma estrutura gigantesca de atenção à saúde com todos os vícios e
problemas acarretados pelo seu exagerado tamanho. Do outro, um número cada vez
maior de pessoas doentes, que buscam - e raramente conseguem - tratamento
médico adequado.
Um
terceiro aspecto é a formação de recursos humanos na área de saúde. E aqui
saliento principalmente o treinamento do médico, pois esta é a categoria que
desfruta de maior status nessa área, e suas concepções servem de modelo para a
maioria dos outros profissionais.
O
médico é um profissional treinado para fazer diagnósticos. A nosologia, ou
seja, o conjunto de doenças estudado na escola médica, é geralmente aquilo que
se chama "doenças universitárias", quadros clínicos bem delineados,
sintomas e sinais aparecendo na ordem determinada, métodos diagnósticos e
terapêutica acompanhando o quadro. Os professores têm o hábito de selecionar
para as aulas práticas aqueles pacientes "típicos", que apresentam o
quadro clínico como descrito nos compêndios, o chamado paciente "de
livro".
Na
prática diária, porém, os pacientes apresentam habitualmente quadros obscuros,
superpostos, sintomas vagos e indefinidos. Aos agentes etiológicos
tradicionais, como os vírus e as bactérias, somam-se aqueles mais imponderáveis
e que não são controláveis por medicamentos ou conduta terapêutica específica:
stress, poluição, subnutrição, acidentes de trabalho e neuroses, todos
decorrentes da deterioração da qualidade de vida. Nesta situação, o
profissional pouco pode fazer pelo seu doente, até porque não foi preparado
para lidar com essas questões.
A
formação médica na maioria das escolas é dissociada das preocupações sociais.
Questões fundamentais que dizem respeito a condições de habitação, alimentação,
educação, emprego, migrações, meio ambiente, cultura e tradição são
raramente discutidas. Tudo aquilo que extrapola o biológico é relegado a
segundo plano e encarado com pouco interesse, como "problema social",
da alçada de outros profissionais, e não do médico.
O
médico não é preparado para trabalhar a Dor e a Morte. Isso se revela na falta
de habilidade com que ele trata essas duas questões que são tão frequentes no
seu dia a dia. A Dor é reduzida a um sintoma e tratada pela negação, com
analgésicos, sem que seja buscado primeiro seu significado. Na prática diária,
o médico ignora a dor do paciente, chegando por vezes às raias da
insensibilidade. Quanto à Morte, é considerada uma "inimiga", que ele
precisa "derrotar", arrancando o paciente de suas "garras".
Quando não o consegue e vê "perdida" a batalha, muitas vezes abandona
o paciente à própria sorte, desaparecendo do hospital na hora em que a família
e o paciente mais precisam dele, não para evitar a morte mas para ajudá-los a
superar o trespasse.
Talvez
em virtude desse stress psicológico de ter que lidar com questões profundamente
existenciais para as quais não está preparado, e por enfrentar no
exercício da profissão uma competitividade tão exagerada, estudos
publicados nos Estados Unidos mostram que as condições de stress em que vivem
os médicos os colocam, ao lado dos publicitários, entre os profissionais que
apresentam maiores prevalências de alcoolismo, suicídio e enfarte, além de
viverem dez a quinze anos menos do que a maioria da população.
À
medida que acontecem os progressos da ciência, a Medicina se transforma cada
vez mais no terreno da especialização. O clínico geral, ou o médico de família,
não mais existe, tendo sido tentada várias vezes - sem sucesso - a sua ressurreição
por alguns programas do governo. Os meios de comunicação, por sua vez, cercam
de uma aura quase divina os super especialistas, aqueles que só operam o dedo
polegar da mão direita ou os que interpretam apenas a onda P do
eletro-cardiograma. A medicina, refletindo o dualismo cartesiano,
continua a se dividir em dois setores estanques: a clínica, que cuida do corpo,
e a psiquiatria, que cuida da mente, como se a mente e o corpo fossem coisas
separadas, como se não fizessem parte de um todo uno e indivisível.
É
claro que com o avanço da tecnologia médica muitas situações que antes levavam
o paciente à Morte não são mais fatais hoje em dia. Conseguimos controlar
muitas doenças que há cinquenta anos atrás ceifavam vidas preciosas e
melhoramos as condições de vida de muitos pacientes que hoje viveriam
miseravelmente sem o concurso de aparelhos ou medicamentos atualmente
utilizados.
Não
se trata, portanto, de abolir a especialização. O clínico geral não pode
dominar todos os campos do saber, mesmo porque o progresso científico é muito
rápido, e seria impossível acompanhá-lo nas suas mais diversas frentes. Não
obstante, a ênfase na especialização faz com que se perca de vista a totalidade
do ser humano e o funcionamento do organismo como um sistema vivo cujos
componentes são interligados e interdependentes, e fazendo parte de sistemas
maiores que o afetam mas que podem também ser por eles modificados.
O
resgate dessa percepção ecológica exige modificações profundas na nossa forma
de perceber as questões relacionadas ao processo saúde-doença, além de implicar
no desejo sincero de assumir a responsabilidade pessoal pelo bem estar de cada
um, tanto a nível individual como coletivo, e o entender a totalidade como
qualidade inerente e básica ao ser humano.
A
primeira e fundamental característica dessa abordagem é entender que saúde e
doença em sentido absoluto não existem. Ambas fazem parte de uma totalidade, de
um processo, e a prova disso é que não se consegue definir uma sem falar na
outra. É, portanto, preferível referirmo-nos ao "processo
saúde-doença", expressão esta que se aproxima mais do que queremos
transmitir.
Dentro
da visão holística, o estado de saúde pode ser definido como um estado de
harmonia entre o corpo, a mente e o ambiente. Nele, o indivíduo traz dentro de
si, harmônicas e equilibradas, as duas tendências básicas dos organismos: a
tendência auto-afirmativa, que o faz identificar-se como indivíduo único
e pessoal, consciente de sua individualidade, e a tendência integrativa,
que lhe dá a consciência de ser e se sentir parte de todos maiores,
integrando-se na harmonia cósmica.
É
por isso que, dentro desse enfoque, não se vê a doença como um conjunto de
sinais e sintomas, que devem ser suprimidos ou controlados por medicamentos ou
procedimentos terapêuticos agressivos. A doença é tão somente reflexo de uma
desarmonia ou de um conflito e deve ser observada e estudada para que se busque
a causa subjacente. Essa observação pode incluir variados instrumentos e procedimentos
para diagnóstico e tratamento - alguns até não ortodoxos.
Em
vez da ênfase nos medicamentos e cirurgia, privilegiam-se as técnicas não
agressivas como exercícios físicos, regimes alimentares, e a busca da
integridade corpo-mente através de técnicas as mais variadas que vão desde as
disciplinas físicas como dança, ioga, tai-chi-chuan até disciplinas espirituais
como meditação. O efeito placebo deixa de ser encarado como um
"truque" que dá certo apenas em pessoas "nervosas" ou
impressionáveis e passa a ter a sua dimensão real, que é a de ativar
capacidades previamente existentes no cérebro que podem levar à cura,
demonstrando de forma cabal o papel da mente na geração da doença e sua
conseqüente potencialidade para afastá-la.
Ao
contrário do modelo biomédico, no qual se privilegia o dado quantitativo obtido
em laboratório através de testes e exames, na visão holística o diagnóstico se
baseia principalmente em dados qualitativos como os relatos subjetivos dos
pacientes e na própria intuição de profissionais.
Exatamente
por isso é que se exige um envolvimento emocional com o paciente que não existe
e é até condenado pelos mestres durante a formação médica. Esse envolvimento é
considerado fator importante para a compreensão que ambos - médico e paciente -
terão do processo e implica em transformar radicalmente tanto a relação entre
os dois como cada um individualmente. Aí, é necessário que o médico abdique do
poder nessa relação, abra mão de sua autoridade e passe a se colocar como
parceiro terapêutico, conferindo ao paciente a responsabilidade pelo seu
próprio trata-mento, ajudando-o como profissional treinado a encontrar o
caminho de sua cura.
Nesse
contexto, a cura é buscada não apenas na eliminação dos sintomas mas num
movimento para restabelecer o relacionamento com o universo, um sentimento de
que é possível ter a integridade e saúde de volta tão logo sejam descartados os
sentimentos e emoções negativas como o medo, o ceticismo, a raiva e a
frustração.
Nessa
abordagem, o corpo e a mente não são separados, e os males psicossomáticos são
da alçada de todos os profissionais de saúde e não apenas dos psiquiatras. A
doença mental passa a ser vista como uma falha na avaliação e na integração da
experiência e os sintomas refletem tão somente a tentativa do organismo de
curar-se e atingir um novo nível de integração. Por isso não devem ser
suprimidos mas trabalhados, para que o novo nível seja atingido.
A
saúde holística não é uma especialidade, nem uma disciplina que, por uma
reforma curricular, passe a ser ensinada na escola médica. Ela é uma
perspectiva, uma forma de abordar a realidade na busca de superar o dualismo, a
fragmentação e o mecanicismo newtoniano-cartesiano. Implica em uma revisão da
nossa própria maneira de encarar e de viver no mundo, tanto como terapeutas
como quanto pacientes. Propõe uma nova forma de perceber e tratar a tensão, de
aceitar a responsabilidade pelas nossas ações e permitir que os outros assumam
as suas. Valoriza a noção de um objetivo, de um projeto de vida e busca
relacionamentos humanos mais satisfatórios e mais criativos.
Finalmente,
faz-nos reconhecer o profundo significado da dimensão espiritual no esquema do
universo e nos mostra que a harmonia que buscamos não pode ser encontrada em
medicamentos, tratamentos ou terapeutas, por melhores que estes sejam. Essa
harmonia está dentro de nós, emana da nossa essência divina, do corpo-mente,
que é a verdadeira matriz invisível da saúde.
BIBLIOGRAFIA
BOLTANSKI, Luc. As classes sociais e o corpo.
Rio de Janeiro, Graal, 1979.
CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação. São Paulo, Cultrix, 1986.
FERGUSON, Marilyn. A conspiração aquariana. Rio de Janeiro, Record, 1990.
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ILLICH, I. Nêmesis da medicina: a expropriação da saúde. 3. ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1975.
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